Introdução
Este artigo foi escrito sob a perspectiva da ética clínica. Nele, procuro relatar minha experiência em prestar consultorias sobre ética a hospitais na Nova Zelândia e Grã-Bretanha, no debate teórico sobre eutanásia. Deste modo, iniciarei com a história de uma pessoa e, em seguida, apresentarei a de outra. Meu objetivo é testar as afirmações sobre os prós e os contras da eutanásia em vista das exigências de decisões clínicas em casos particulares. Não afirmo que esta seja a única e muito menos a maneira normativa de resolver os problemas, mas acho que grande parte da discussão carece da realidade da experiência clínica e, portanto, tende a simplificar e até mesmo caricaturar as situações reais que as pessoas enfrentam nos dilemas médicos a respeito da vida e da morte.
Há seis anos e meio, encontrei-me pela última vez com uma senhora chamada Anna. Ela pediu-me para contar sua história sempre que pudesse, e o tenho feito com freqüência desde então. Era uma mulher na faixa dos trinta anos e ficara tetraplégica alguns anos antes, em decorrência de um acidente de trânsito. Também sofria de dor fantasma difusa, o que requeria a constante administração de altas doses de analgésico para que pudesse suportá-la. Anna era casada e tinha três filhos pequenos. Antes, era uma pessoa muito ativa - adorava caminhadas e era uma cantora amadora de considerável talento. Gostava também de teatro amador. Profissionalmente, era professora. Após o acidente, achava que não tinha mais razão para viver, que não era mais a pessoa que costumava ser, e queria morrer. Apesar de ter deixado claro que não queria ressuscitamento, ela havia sofrido uma parada respiratória quando estava longe de seus enfermeiros usuais, foi ressuscitada e tornou-se dependente de respiradores artificiais. Após alguns meses de discussão e de busca de opiniões legais e éticas, decidiu-se que seu pedido para desligar os respiradores poderia ser aceito. Assim, foi instalado um dispositivo que permitiria a ela desligar os aparelhos. Três dias após a nossa conversa, em uma data predeterminada e com toda a sua família presente, ela os desligou. Foram administrados medicamentos para evitar qualquer tipo de fadiga respiratória e ela mergulhou na inconsciência. No entanto, pouco tempo depois, acordou e perguntou irritada: "Por que ainda estou aqui?". Mais medicação foi administrada e ela tornou a entrar em estado de inconsciência. Poucas horas depois sua respiração parou completamente e ela morreu.
São situações como a de Anna que levam a pedidos de alteração das leis para a legalização da eutanásia. Ela quis morrer; seus enfermeiros e sua família sabiam que era isso o que ela buscava com o desligamento dos aparelhos de suporte à vida. Por que, então, ela não poderia ter sido morta mais rápida e efetivamente por meio de uma injeção letal, e sem a longa demora e o debate que permitiram que os aparelhos fossem desligados? Além disso, já que ela não morreu devido à interrupção do tratamento, mas somente depois da administração de mais medicamentos, não houve uma certa desonestidade em alegar que tudo isso estava de acordo com os tratamentos legalmente permitidos? Isto não foi, na realidade, um `suicídio medicamente assistido' sob a aparência de medidas legalmente permitidas de recusa de tratamento e alívio da dor e da agonia?
Neste artigo, argumentarei a partir da perspectiva da ética cristã, visto que é nela que meu próprio entendimento moral se baseia, mas a intenção do meu artigo é prover os fundamentos para a formulação de políticas públicas dentro de sociedades religiosas ou secularmente pluralistas. Acredito que a `lei natural' pode ser interpretada e esclarecida pelo entendimento cristão de nossas obrigações para com nossos semelhantes humanos. Deixem-me descrever desde o princípio a conclusão a que cheguei: apesar da minha compaixão para com Anna, apesar dos problemas que a lei atualmente em vigor causa a pessoas como ela e a pessoas que se preocupam com elas, e apesar das ambigüidades morais em interpretar aquela lei de forma compassiva com os portadores de sofrimento irremediável, a Justiça requer que não mudemos a lei. Para fundamentar essa conclusão, tentarei esclarecer os diferentes tipos de decisões que são tomadas na prática médica atual e, é claro, terei que explicar o que quis dizer com a frase "a Justiça requer".
Decisão pelos incompetentesInicio a minha exploração do tema considerando uma situação bem diferente da de Anna. Antes de morrer, Anna era uma pessoa que se expressava com muita desenvoltura, clara em seus próprios pontos de vista e insistente em fazer com que os mesmos fossem ouvidos e respeitados. Uma forte lembrança que tenho (gravada em vídeo) é a de sua entrevista comigo, diante de uma turma de aproximadamente 200 estudantes de Medicina. A força de sua convicção de que já não valia mais a pena viver, e que não se tratava meramente de um estado depressivo temporário, tinha tão poderosa autoridade que tornou vazios muitos dos comentários feitos a ela por estudantes bem intencionados a respeito de manter a fé e considerar sua família. Mas devemos observar que grande parte da prática médica não oferece a possibilidade desse tipo de diálogo com uma paciente competente em busca de sua própria morte de maneira fundamentada. Muitas, talvez a maioria, das decisões médicas a respeito da vida e da morte precisam ser feitas em favor de pessoas que não podem expressar qualquer desejo, seja porque ainda não tenham desenvolvido a capacidade de formular desejos e intenções, ou porque esta capacidade tenha sido destruída por doença ou acidente. É importante observar este aspecto da tomada de decisão - às vezes chamada de eutanásia não-voluntária - antes de discutir os pedidos de medidas para pôr fim à vida, por parte de pessoas competentes. A lei estabelece limites para essas decisões em nome de outrem, os quais permaneceriam - pelo menos na teoria - ainda que a eutanásia voluntária fosse legalizada. Qual é a justificativa para esses limites? Permitam referir-me novamente a um caso do qual participei diretamente, para explorar esta questão.
Zoe nasceu prematura de três semanas, teve quer ser ressuscitada no nascimento e foi levada para a unidade de terapia intensiva e posta em ventilação artificial e alimentação gástrica. Logo, soube-se que tinha um distúrbio hereditário raro e muito grave, que não havia sido diagnosticado antes do nascimento e que implicava em constante degradação de sua pele, tanto externa como internamente. Qualquer contato com a superfície de sua pele poderia facilmente provocar grandes e dolorosas lesões, requerendo cuidado persistente para curá-las. Esse problema é incurável, e apesar da literatura conter fotos de crianças que sobreviveram três ou quatro anos, seus corpos se transformaram em uma massa de feridas e suas vidas tiveram que ser tão restritas fisicamente que era impossível ter uma infância normal. O fato de Zoe ter sido entubada ao nascer significava que era bem provável que isso já tivesse causado danos à sua traquéia, a qual estaria predisposta à infecção. E todos os meios invasivos necessários ao tratamento intensivo neonatal (que são muitos) provavelmente causariam mais lesões internas ou externas à pele, dores associadas e riscos de infecção.
Depois de ampla discussão da equipe neonatal, e com os pais de Zoe, decidiu-se remover todas as formas de suporte artificial à vida, mas manter o equilíbrio hidreletrolítico e tentar a alimentação com mamadeira. Quando isso foi feito, Zoe foi capaz de respirar sem ventilação e foi removida para uma sala lateral, fora do centro de tratamento neonatal, onde seus pais poderiam facilmente permanecer com ela. Decidiu-se por não tratar nenhuma infecção, mas somente aplicar medicação para alívio da dor e do sofrimento. Zoe morreu seis dias depois, provavelmente em conseqüência de uma infecção iniciada pelos danos causados pela entubação, quando de seu nascimento.
A mesma lógica pode certamente aplicar-se a Zoe, como ocorreu na morte de Anna - por que o prolongamento por seis dias, quando uma dose letal poderia ter encerrado as coisas em questão de momentos? É claro que os desejos de Zoe não puderam ser conhecidos como os de Anna o foram, mas o potencial para a dor física era muito maior no caso de Zoe - cada toque era um risco (na verdade, os enfermeiros e os pais tiveram a certeza, por sua reação após deixar a área de alta tecnologia, de que ela não sentia dores ou sofrimento, e aprenderam como segurá-la com cuidado e carinho, sem causar mais danos à sua pele). A lei não permitiu à equipe médica matar Zoe, mas permitiu que se decidisse suspender os tratamentos, alguns que poderiam certamente salvar sua vida, se tais medidas fossem julgadas como prejudiciais ao interesse do paciente. Mas a distinção feita pela lei é coerente e moralmente justificável? Ou é, como os advogados da eutanásia argumentam, um sofisma que permite que médicos matem pacientes sob o pretexto de tratamento?
Este é o problema que precisa ser resolvido antes de debatermos o pedido para morrer por parte de uma pessoa competente. É evidente que os defensores da eutanásia voluntária (como Peter Singer e Helga Kuhse, por exemplo) não estão simplesmente argumentando a respeito de honrar os desejos do paciente capaz. Em Should the baby live? (O bebê deveria viver?) eles procuram demolir qualquer argumento que estabeleceria limites entre o não-tratamento e o homicídio de neonatos (1) - e o mesmo deve certamente aplicar-se aos adultos incapazes. O único fator relevante, de acordo com a perspectiva conse-qüencialista desses autores, é o resultado da ação ou omissão médica. Dessa maneira, se a morte de Zoe pode ser prevista como provável quando o tratamento é suspenso, então o não-tratamento deve ser considerado o equivalente moral ao homicídio, se todos os outros fatores forem desconsiderados na equação moral. Somente os argumentos conseqüencialistas devem ser permitidos em oposição ao homicídio ativo. Por exemplo, os argumentos sobre a criação de um sentimento de insegurança em uma sociedade na qual os incapazes podem ser mortos se se pensar que suas vidas não têm mais valor.
Mas não podemos aceitar a suposição conseqüencialista de que somente os resultados por si só têm significado moral. Esta é uma moralidade minimalista, do tipo que ignora tanto as intenções dos agentes relevantes como o contexto social das escolhas que estão sendo feitas no curso do tratamento médico de uma pessoa. Considerando a assistência prestada a Zoe, existe um universo de diferenças entre a batalha para proporcionar o tratamento adequado e a decisão de evitar intervenções médicas impertinentes, por um lado, e a decisão de interromper rapidamente a sua vida com uma dose letal, por outro. No contexto social da assistência prestada a Zoe, os valores devem sempre favorecer a valorização da vida na mais frágil das circunstâncias - esta é a filosofia essencial da medicina neonatal. Esta valorização deve ser sempre moderada pela preocupação de assegurar uma morte tranqüila, quando os esforços para possibilitar uma sobrevivência suportável se mostrarem inúteis. É este sutil equilíbrio que é mantido pelo sistema legal que proíbe matar, mas permite a suspensão ou retirada do tratamento. Abandonar essa distinção em nome de uma racionalidade que mede somente as conseqüências das ações significa privar a assistência médica do contexto moral. No mundo incerto da assistência clínica, as intenções e orientações de valores que proporcionam a assistência são de fundamental importância, uma vez que criam a barreira contra a tendência moderna de buscar soluções rápidas para as ambigüidades morais de nossa vulnerabilidade humana. A decisão de renunciar à sobrevivência de uma pessoa que não pode falar por si mesma é sempre difícil e incerta. Nenhuma lei deveria facilitar isso.
Definindo a eutanásia voluntáriaTendo estabelecido o contexto de manter a distinção entre homicídio e suspensão ou retirada de tratamento dos incompetentes, retornarei agora à história de Anna. Os acontecimentos que levaram à sua morte são uma boa ilustração da relevância contínua desta distinção para o debate sobre a legalização da eutanásia voluntária. Quando as leis ou os projetos de lei sobre a eutanásia voluntária são elaborados, há uma tendência para se enfatizar o estado da pessoa que faz o pedido e evitar referência ao fato de que a lei proposta autorizará um ato de homicídio por outra pessoa. Dessa maneira, por exemplo, uma lei recentemente aprovada no território norte da Austrália (mas depois derrubada pelo Parlamento federal) usou a frase "ajudar-me a pôr fim à minha vida". Isto parece referir-se somente à descriminação do aconselhamento ou incitação ao suicídio, mas de fato ocorreu a legalização da administração de uma substância letal pelo médico. É desonesto ocultar a descriminação do homicídio na legislação sobre eutanásia pelo uso de frases que obscurecem o fato do homicídio. Sugiro, portanto, que descrevamos a legislação sobre eutanásia voluntária nos seguintes termos:O objetivo da legislação é descriminar a morte de uma pessoa por outra, sob circunstâncias específicas que incluem a competência e o estado mental da pessoa que pede para morrer, a avaliação independente das circunstâncias médicas que levaram ao pedido, e o registro da identidade e a qualificação profissional da pessoa que levou a efeito a morte.Com base nesta definição, podemos ver que a morte de Anna envolveu uma série de questões morais separáveis. A primeira foi a sua solicitação para que não fosse reanimada e seu último pedido para que a ventilação fosse suspensa. Isto parece claramente ser uma recusa, por uma pessoa competente, de tratamento que aparentemente salvaria sua vida, e tal recusa é sancionada por lei em muitos países (na Nova Zelândia, onde esses acontecimentos ocorreram, tal recusa de tratamento é resguardada por uma Declaração de Direitos). A base moral para tal direito legal é que a liberdade de uma pessoa para decidir o que deve ser feito a ela por outrem não pode ser limitada por argumentos de que os outros sabem o que é o melhor para ela (é este mesmo argumento que permite a uma pessoa capaz decidir cometer suicídio sem penalidade criminal, embora tentativas possam ser feitas para impedir o suicídio, a fim de assegurar que a decisão seja bem refletida.) Mas o último pedido de Anna implicou em mais que uma simples recusa de tratamento. Como estava tetraplégica, ela virtualmente não tinha liberdade de ação, mas queria participar ativamente da descontinuação da ventilação. Ao criar um dispositivo que ela pudesse acionar, a equipe médica talvez tenha participado de um suicídio medicamente assistido. Certamente, Anna viu isto desta forma, embora a desconexão não tenha de fato resultado em sua morte. Poder-se-ia argumentar, no entanto, que os médicos estavam simplesmente ajudando-a a implementar sua recusa ao tratamento, uma situação bem diferente de conectá-la a um máquina da morte do tipo Kevorkiano. Mas a última complicação surgiu quando Anna acordou fora dos aparelhos e descobriu ainda estar viva. A administração de medicamentos nesse estágio parece claramente ter sido uma resposta a seu pedido para morrer, apesar da certeza de que sua respiração, embora ainda ativa, já estava muito comprometida. Nesse estágio, no meu ponto de vista, o médico matou a paciente a seu pedido, evidentemente um ato de eutanásia voluntária, conforme a defini, e, portanto, um ato criminoso, já que não havia nenhuma lei que o autorizasse. Nenhuma ação foi movida contra o médico nesse caso, nem era provável que seria, dadas as circunstâncias de fadiga emocional e respiratória em que os sedativos foram administrados. Mas por que o médico teria que correr tão grande risco de sofrer uma ação legal? Por que a eutanásia voluntária não deveria ser legalmente permitida, dentro de uma estrutura legal de proteção, para permitir que pessoas como Anna tenham suas vontades atendidas sem comprometer seus médicos?
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