Sexo e Morte. Juntos, por que?

A cultura atual achará, provavelmente (e, no mínimo), estranho “combinar” sexo e morte. Mas, se se dedicar uns momentos para reflexão (nunca temos tempo, hoje, ainda mais para o que nos afeta o mais profundo), certamente entenderá. São duas “energias” avassaladoras que movem e mantêm o mundo, embora sejam, ambas, motivo de medo e/ou felicidade (esta também nos assusta, embora neguemos). Parecem contrários. Não são. MORTE e SEXO. NINGUÉM passa pela vida, ou a vive plena sem uma ou outro. Não temoos sido, porém, capazes de os aprender ou ensinar. Fugimos de ambos os temas. Permeiam o dia a dia e fingimos não existirem. A sexualidade (que TODOS, do recém nascido ao moribundo, até os que “optam por não a viver” - se isto fosse possível -), todos a vivem. Mas, se não se foge do "olho no olho", esconde-se. Metem medo, e muito. Já a morte, retratada terror, que “vem” para nós (na verdade, “está” em nós) a temos como medo maior, sem disfarce. Porém, estranhamente complementares, “controlam” o mundo e fazem o humano trilhar menos perto dos extremos. E, paradoxalmente, nos extremos... Sexo e Morte. O mundo não existiria, tal como é, sem a morte, sem o sexo e seus exercícios, suas presenças.

Ora, entendamos. Nenhuma mente, por mais crédula que seja, por mais inocente que se possa imaginar, ainda acredita em fantasias (até úteis no despertar da humanidade, ainda selvagem, com pouco ou nenhum conhecimento, onde tudo era ensinado ou contado de maneira figurada, alegórica, para dar uma mensagem, em geral forte, que tenta cooptar para a causa defendida, seja por vislumbres de alegria e paz, como a promessa do paraíso, seja pela ameaça de dor, como a figura do inferno). Embora nos nutramos delas e nelas.

Nascer pela cegonha. Ou acreditar que a gente tem o poder de “fazer um filho”. Fazemos, sim, pelo SEXO, um corpo. A matéria. E, assim, nos satisfazemos em relação ao poder de criar, e nos sentimos bem, imaginando que o filho é fruto nosso, “fabricação” nossa. Se ele, o corpo, não for habitado, será um "monte de matéria", um belíssimo bólido, sem motorista. Perguntamos se o clone (que não tardará assim tanto, provavelmente) seria nossa repetição. Muita inocência imaginar que sim. Provavelmente, ao “nascer”, seria nossa figura de quando nascemos, mas até aí já começa a diferença, pelo tipo de parto, por exemplo. Ou seja, o meio externo entrará com altíssima contribuição na formação do ser humano. É preciso, então, que ALGO ainda "mais acima", que não pode ser definido pela nossa ciência, venha habitar o corpo. SOPRO, ESPÍRITO, ALMA, NOUS, PNEUMA, não importa que nome venhamos a dar. Sem esta essência, a eterna, definitiva, imortal, nada de vida no corpo. E, claro ainda, Deus não fica de plantão esperando a gente “proporcionar condições” para Ele nos “dar um filho”. O que entendemos nosso, filho, é muito mais. Já existe desde a criação e vem habitar o corpo, na esperança de nos trazer felicidade e ser, ele próprio, feliz. E o faz por livre e espontânea vontade (isto de dizermos que “filho não pediu para vir ao mundo” é, ainda, uma escapadela que encontramos para justificar-nos diante de algo que julgamos não correto na relação com o mesmo. Não é verdade. Pediu para o abrigarmos na matéria, e foi aceito.).

Mas, para nascer, é preciso que haja a primeira morte significativa (mortes acontecem dentro do útero, quando nos formamos e crescemos e, na verdade, ocorrem ainda antes de sermos concebidos, pois nossos “quase corpos”, os espermatozóides, se perdem aos milhões, para que tenhamos sido o vencedor). O problema é que não nos “ligamos” nisto (o que é bom, na medida em que ainda não estamos prontos para entender pois, imaturos, “temos os filhos” como propriedade, como nossa continuação...). E, durante a vida, inúmeras outras mortes acontecerão, todo dia, a toda hora, e não percebemos ou não queremos perceber. As mortes vão se somando. A elas se sucede, sempre, um nascimento, ou um renascimento. Somos outros depois de cada morte, mesmo que não a percebamos ou não percebamos nossa mudança. Morremos, pois, todos os dias, e renascemos. Morrer e renascer. Aquela criancinha indefesa vai se transformando até se tornar adulta. Transformações, PASSAGENS. Isto, sem relacionar as mortes do dia a dia que não estão no nosso corpo, mas nos atingem, nos modificam, nos “matam” lentamente, e nos permitem renascer novamente, mais fortes, mais experientes. Até que chega a GRANDE MORTE, a que aprendemos a ver como o final e tal nos embota a percepção pois é muito mais que isto, é o RENASCER, LIBERTAR. Mas, se TODAS as mortes que nos permeiam são cercadas de renascer, porque a “última” não seria, também, um renascer?

TODOS queremos amar. Viver nossa sexualidade. Temos os orgasmos da vida como mostra do êxtase que é o viver no Paraíso, livre enfim. Mas, também, TODOS queremos morrer. SIM, TODOS QUEREMOS MORRER. Um exercício a que nos furtamos, negamos, nos revoltamos, até. Mas é a pura verdade. Faça uma pequena reflexão e se imagine imortal, preso no corpo material, corruptível, que vai envelhecer, envelhecer, até não se prestar a mais nenhuma qualidade de vida. Ali, velho e alquebrado, dependendo em tudo de todos, com seus entes queridos já partindo ou em processo de também partir, você sozinho... Aí implorará pela MORTE. Não há como fugir disto. É nossa chave de libertação. Não a tornemos dolorosa, quando ela é nossa grande amiga. Não precisamos chamá-la, ou esconjurá-la. Esta está em nós, é nossa grande e amada amiga, a libertadora.

Então, o entrelaçamento proposto é absolutamente pertinente. NINGUÉM, absolutamente ninguém, vive à margem do SEXO (que o fez existir como corpo) ou sem a MORTE (que lhe permite voltar, inteiro).

Obs: As colocações são estruturadas na percepção cristã, mas se pode inferir o mesmo raciocínio em relação a TODAS religiões. Bem vindo à Vida

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quinta-feira, 20 de maio de 2010


Aspectos Legais: Pacientes Terminais – Morte Encefálica
Daisy GoglianoDoutora em Direito, Professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo-SP.
O progresso da tecnologia médico-biológica está a impor profundas transformações ético-jurídicas. Em face das novas técnicas de sustentação vital e de reanimação, como a utilização de meios mecânicos de respiração artificial, o fenômeno morte hoje não se resume simplesmente na cessação espontânea das funções cardiorrespiratórias. Na atualidade, fala-se na ocorrência da "morte encefálica" que deve ser constatada por critérios estritamente médicos, não cabendo à lei defini-los pois isto limitaria a adoção de novos parâmetros ditados pela própria evolução da ciência. A interrupção da sustentação vital, uma vez estabelecida a morte encefálica, não se confunde com a eutanásia ou eventual "direito de morrer", no sentido de precipitar o evento "morte", o qual, efetivamente, já ocorreu. Por respeito à dignidade humana o médico deve evitar que o paciente em morte encefálica seja submetido a terapêutica desnecessária, não só inútil como fútil.
UNITERMOS - Paciente terminal, morte encefálica, legislação.


Noções Introdutórias
Vida e morte, dois extremos, dois opostos, dois fenômenos em cuja seqüência se desenvolve todo o destino do homem, do ser humano considerado como pessoa pelo Direito.
Excluindo as áreas semânticas que envolvem os vocábulos - vida e morte - que correspondem a níveis conceituais diversos na Biologia e na Medicina, para o Direito, tanto o evento vida como o evento morte são considerados fatos jurídicos, pois, não obstante considerados fatos de ordem natural, onde a vontade humana não assume qualquer papel relevante, são fatos dos quais o direito se origina, como se diz na velha parêmia: ex facto ius oritur. Se o direito origina-se do fato, o evento natural - vida e morte - entra para o mundo do Direito no momento em que a norma agendi, isto é, a norma de agir, objetivamente considerada, como direito objetivo, incide e atua sobre o fato, o acontecimento mesmo de ordem natural, para torná-lo jurídico, gerando dai, para o seu titular um direito subjetivo, um direito que lhe é próprio, uma faculdade de agir, conferida pelo sistema jurídico, na configuração da relação jurídica.
Como diz R. Limongi França, "a norma agendi, isto é, o direito objetivo, de natureza estática e eidética, para se dinamizar e concretizar, gerando assim a correspondente facultas agendi, supõe a incidência daquilo que ordinariamente se chama fato jurídico."
E acrescenta: "Em outras palavras, é o fato jurídico que, em princípio, estribado no direito objetivo (cujas formas de expressão são variadas, mas das quais a principal é a lei), dá azo a que se crie a relação jurídica, capaz de submeter certo objeto ao poder de determinado sujeito. A esse poder se chama direito subjetivo" (1).
Na lição de Savigny (citado em (1)), consideram-se fatos jurídicos "os acontecimentos em virtude dos quais as relações de direito nascem, bem como se modificam e se extinguem."
Vida e morte, como acontecimentos naturais, são considerados na doutrina alemã como tatbestand, pressupostos materiais a que o ordenamento jurídico condiciona as fases de existência (nascimento, modificação e extinção) de uma relação jurídica, segundo o magistério de Caio Mário da Silva Pereira (2), porque no momento em que a norma, "antes estática e eidética", utilizando a expressão de R. Limongi França, atua sobre o fato, estabelecendo-se assim, a relação jurídica, o fato, como pressuposto material, passa a ser jurídico, (entrou para o mundo jurídico), exsurgindo da relação jurídica efeitos jurídicos, assumindo o Direito o seu caráter dinânico. É nesse sentido que se diz que a relação jurídica também, tal qual o homem, tem o seu ciclo existencial, nasce, desenvolve-se, modifica-se e extingue-se.
Pontes de Miranda assinala com clareza: "Só existem direitos subjetivos porque há sujeitos de direito, e só há sujeitos de direito porque existem relações jurídicas"(3). Em sua estrutura a relação jurídica estabelece-se entre sujeitos ou partes, vale dizer, intersubjetiva, cada qual na sua posição, como sujeito ativo, em que a norma de agir confere um poder, em face de um sujeito passivo, na posição de dever, cujo objeto pode ser um bem jurídico, natureza ideal ou material, submetido ao poder do detentor do direito subjetivo.
Da noção de relação jurídica, como vínculo entre duas ou mais pessoas, que produz efeitos na ordem jurídica, exsurge a noção de pessoa e direito subjetivo, em que a pessoa é considerada sujeito de direito. Quando o Código Civil brasileiro, em seu art. 2° afirma que "todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil", está a atribuir a todo o ser humano, sem qualquer distinção, personalidade jurídica, conferindo-lhe, por isso, a aptidão genérica de contrair direitos e obrigações na ordem jurídica, considerando-o, portanto, pessoa. Todo o indivíduo, todo ser humano, não importando a sua condição, raça, sexo e idade é dotado de personalidade, por ser sujeito de direitos, em que se atribui a faculdade de agir no mundo do direito. Como diz R. Limongi França, "personalidade é a qualidade do ente considerado pessoa"(4). Para o Código Civil "a personalidade civil do homem começa do nascimento com vida", pondo a lei a salvo, desde a concepção os direitos do nascituro (art. 4.°). Basta, portanto, nascer com vida, para que o homem adquira personalidade jurídica. Não se exige a viabilidade, como fazem alguns sistemas, basta apenas nascer com vida, basta um só instante de vida, com a entrada de ar nos pulmões. Como observa Caio Mário da Silva Pereira: "Ocorre o nascimento quando o feto é separado do ventre materno, seja naturalmente, seja com auxilio de recursos obstétricos. Não há cogitar do tempo de gestação, ou indagar se o nascimento ocorreu a termo ou foi antecipado. É necessário e suficiente, para preencher a condição do nascimento, que se desfaça a unidade biológica, de forma a constituírem mãe e filho dois corpos com economia orgânica própria."
E acrescenta: "A vida do novo ser configura-se no momento em que se opera a primeira troca oxicarbônica no meio ambiente. Viveu a criança que tiver inalado ar atmosférico, ainda que pereça em seguida. Desde que tenha respirado, viveu: a entrada de ar nos pulmões denota a vida, mesmo que não tenha sido cortado o cordão umbilical, e a sua prova far-se-á por todos os meios, como sejam o choro, os movimentos, e essencialmente os processos técnicos de que se utiliza a medicina legal para a verificação de ar nos pulmões. A partir desse momento afirma-se a personalidade civil" (2).
Em nosso sistema jurídico não se exige a viabilidade, isto é, aptidão para a vida. Não importa se o ser humano nasça com, por exemplo, aberrações teratológicas ou malformação e que não tenha a forma humana, classificando-se entre os monstros (monstrum vel prodigium) e não possa comunicar-se com o mundo exterior. Basta nascer com vida, dentro das características acima apontadas, ou seja, com a separação do ventre materno e a respiração com a troca oxicarbônica no meio ambiente. É o começo da personalidade jurídica.
Tecidas essas considerações importa observar que o ser humano, a pessoa, dotada de personalidade, com aptidão genérica de adquirir direitos e contrair obrigações de ordem civil, portanto, na qualidade de sujeito de direitos, não deixa de ser pessoa como paciente terminal ou sob manutenção cardiorrespiratória assistida, quando mantida por circulação extracorpórea e respiradores artificiais, enquanto não declarada morta. A personalidade jurídica só termina com a morte. O Código Civil, em seu art. 10 apenas diz que "a existência da pessoa natural termina com a morte", ressalvando os casos de comoriência no momento em que dois ou mais indivíduos falecem na mesma ocasião, não se podendo averiguar se algum dos comorientes precedeu aos outros, os quais, presumir-se-ão simultaneamente mortos, para efeitos sucessórios, em que são chamados a suceder, em conjunto, os herdeiros dos respectivos comorientes, em que nenhum deles pode suceder ao outro. O diploma civil, portanto, se ocupa do momento da morte, jamais de sua conceituação e dos critérios médico-legais de sua constatação. E não poderia fazê-lo, pois cabe à Medicina, notadamente à Medicina Legal, estabelecer a sua conceituação.




Aspectos Legais: Pacientes Terminais – Morte Encefálica

O corpo morto
O cadáver é o corpo inanimado, sem vida. É a pessoa morta. Com a morte, como vimos, estingue-se a personalidade, "a qualidade do ente considerado pessoa", que deixa de ser sujeito de direitos.
No entanto, não obstante a extinção da personalidade jurídica, o direito tutela o corpo humano inanimado. São estas as palavras de De Cupis: "Não é pelo fato da personalidade jurídica se extinguir com a morte que o cadáver deixa de ser considerado pelo ordenamento jurídico. Pelo contrário, o corpo humano, depois da morte, torna-se uma coisa submetida a disciplina jurídica, coisa, no entanto, que não podendo ser objeto de direitos privados patrimoniais, deve-se classificar entre as coisas extra commercium. Não sendo a pessoa, enquanto viva, objeto de direitos patrimoniais, não pode sê-lo também o cadáver, o qual, apesar da mudança de substância e função, conserva o cunho e o resíduo da pessoa viva. A comercirbilidade estaria, pois, em nítido contraste com tal essência do cadáver, e ofenderia a dignidade humana" (5).
Por sua vez, toda pessoa viva, como sujeito de direitos, pode dispor em vida sobre o destino do seu cadáver, no exercício legítimo de um direito da personalidade, estabelecendo as condições de sepultamento, embalsamamento, de proteção e incolumidade, eis que esta não reside só na pessoa viva, por reverência e respeito, no reconhecimento da dignidade humana. Trata-se de ato de disposição de última vontade o qual deve se revestir dos requisitos da validade que informam os atos jurídicos, sob pena de nulidade, que resulta em ineficácia jurídica.
Aludindo ao destino normal do cadáver, De Cupis assinala que por ser objeto de um direito privado não patrimonial, "emergente do costume e que compreende a faculdade de determinar o modo e a forma do seu destino normal", é objeto de direito. "Tal direito respeita aos parentes do defunto, em razão do sentimento de piedade que os liga ao próprio defunto. Trata-se de um direito familiar e, portanto, de direito-dever que como tal, tem natureza bem diversa do direito sobre as partes separadas do corpo. Este último direito pode ser sujeito a limitações relativas a certos usos impróprios das mesmas partes, sem que mude, por esse fato, a própria natureza do direito de propriedade" (5).
Isto posto, cumpre reafirmar que o fato de a personalidade ser conferida a partir do nascimento com vida e extinguir-se com a morte, o mesmo não sucede com algumas categorias de direitos da personalidade, as quais se projetam após a morte, na esfera das relações de família, de parentesco e de afeição, esta última em face do reconhecimento da união estável, como se vê, por exemplo, na tutela da honra, do nome, da imagem, da memória do morto e tantos outros direitos da personalidade. Eles não se extinguem com o fim da própria personalidade, notadamente aqueles que dizem respeito à tutela do cadáver e que envolvem atos de disposição, daquele que foi pessoa, em respeito à sua última vontade, onde se lhes aplicam as regras de hermenêutica concernentes às disposições de última vontade, na interpretação dos testamentos, sob o ditame do princípio geral que ordena prevalecer sempre a perquirição da real intenção do de cujus, manifestada em vida, cujo respeito se impõe.
Considerando que os direitos da personalidade são intransmissíveis, mesmo mortis causa, embora gozem de proteção depois da morte, na forma acima referida, na configuração de nova relação jurídica, na posição que assumem os novos titulares, trazemos à colação o art. 71 do Código Civil português, que assim dispõe: "1. Os direitos da personalidade gozam igualmente de proteção depois da morte do respectivo titular; 2. Têm legitimidade, neste caso, para requerer as providências previstas no parágrafo 2° do artigo anterior (tutela geral da personalidade), o cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, irmãos, sobrinho ou herdeiro do falecido; 3. Se a ilicitude da ofensa resultar da falta de consentimento, só as pessoas que o deveriam prestar têm legitimidade, conjunta ou separadamente, para requerer as providências a que o número anterior se refere". Não é sem razão que o Projeto do Código Civil brasileiro (n° 634, de 1975), não obstante suas imprecisões na matéria, prescreve: "art. 11 - Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária".
Assim, em não havendo manifestação de vontade do de cujus sobre o destino de seu cadáver, isto é, do seu corpo para depois da morte, os parentes podem determinar o seu destino normal, fundado no sentimento de piedade que informa tal ato e notadamente por participar das relações de família.

O consentimento

Com base nos lineamentos básicos tratados acima é de se ponderar que o consentimento, a declaração de vontade (manifestação de vontade qualificada), destinada a produzir determinados efeitos jurídicos, impõe-se para todo e qualquer ato de disposição do próprio corpo, como todo e qualquer ato jurídico, que se revista de validade, para que possa produzir efeitos jurídicos. O consentimento válido exclui a ilicitude do ato, o qual deve, considerando a gradação que envolve os direitos da personalidade que se circunscrevem no direito à vida, como bem supremo, inalienável, impostergável e intransmissível, vale dizer como direito absoluto, o que impõe um dever geral de abstenção, de oponibilidade erga omnes, isto é, impondo a todos, sem qualquer distinção, um dever de respeito, na obrigação negativa de não lesar e não perturbar.
A maioria dos diplomas que cuidam da integridade física, no âmbito dos direitos da personalidade, exige além do consentimento válido, que o ato não ofenda os bons costumes e a ordem pública.
No plano da Deontologia Médica, o art.59 do Código de Ética Médica impõe ao médico o dever de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta ao mesmo possa provocar-lhe dano, devendo, nesse caso, a comunicação ser feita ao seu responsável legal.
Por sua vez, consoante o art. 124 é vedado ao médico "usar experimentalmente qualquer tipo de terapêutica ainda não liberado para uso no País, sem a devida autorização dos órgãos competentes e sem o consentimento do paciente ou de seu responsável, devidamente informado da situação e das possíveis conseqüências".
Nestas condições, o consentimento viciado pode caracterizar-se diante de qualquer ato que possa levar ao induzimento, à coação, fraude ou artimanha. Daí a necessidade de certos e determinados requisitos para que a declaração de vontade possa produzir efeitos jurídicos.
No que tange ao ato médico, para que a declaração de vontade seja válida, é necessário que o paciente reúna condições prévias em sua capacidade de querer e de entender e que tenha compreendido e querido o ato realizado no caso concreto.
O que se impõe é que todo ato médico tenha por fim único e exclusivo preservar a integridade e a saúde, em suma, preservar o direito à vida, que se insere na finalidade da própria Medicina.
Para a obtenção de um consentimento válido, na intersubjetividade que cerca o direito, cujas relações jurídicas nascem da alteridade que lhe é imanente, na exteriorização e na reciprocidade, impõe-se por parte do médico a informação, com todos os esclarecimentos que se fazem necessários, na obtenção do consentimento esclarecido. Ao lado do direito à verdade está o direito à informação, mediante o qual se obtém um consentimento esclarecido. O paciente deve ser informado de todos os riscos que a terapêutica e o tratamento médico encerram, para que conscientemente possa declarar a sua vontade, sem qualquer induzimento por parte do médico, no intuito de obter a colaboração do paciente.
Para tanto, a informação deve ser dada levando em conta as condições sócio-culturais do paciente, em linguagem que possa compreender a terapêutica a ser adotada.
Genival Veloso de França, insigne estudioso e um dos precursores a tratar da matéria, cuida do assunto aos discorrer sobre os transplantes, que, mutatis mutandis, se aplica ao estudo em questão ao assinalar: "O médico não pode dispor incondicionalmente da vida de seu paciente a ponto de obrigá-lo a aceitar uma conduta terapêutica, a não ser diante de iminente perigo de vida". Observa, entretanto, que "nos transplantes, deve o médico informar ao doente todos os riscos operatórios, as possibilidades de êxito e a duração possível de sua sobrevivência. É certo que em tais situações necessita-se de um determinado cuidado, o que não impede, todavia, uma conscienciosa informação, através de uma boa preparação psicológica que ajude a se obter uma maior colaboração do enfermo. É melhor sermos sinceros e às vezes até rigorosos com uma verdade, do que obter-se um consentimento por fraude" (6).
O consentimento esclarecido liga-se, portanto, à informação também esclarecida, em que se justapõem, na sua efetiva interdependência e reciprocidade, na relação jurídica que se instaura entre médico e paciente, pois, como diz Veloso de França "a linguagem própria aos técnicos deve ser adaptada ao leigo, senão ele tende a interpretações temerárias e duvidosas" (6).
Vittorio Chiodi, estudando o tema -II consenso del paziente nella teoria medico-legale - traça numa reflexão, os limites do direito à verdade, como direito da personalidade, que encontra outro limite no respeito ao paciente, em grau humanístico, desde que a revelação detalhada da gravidade de sua enfermidade não coloque em risco a sua vida, piorando as suas condições clínicas, advertindo que a informação deve ser proporcional ao grau de cultura e inteligência do paciente (7).
No mesmo passo, Massimo Paradiso, em trabalho dedicado a Il devere del medico di informare il paziente. Consenso contrattuale e diritti della persona traça os limites da comunicação, concluindo que o dever primário do médico, qualquer que seja a fonte da relação, é una esauriente informazione del paziente circa le sue reali condizioni di salute e le concrete prospettive di cura. Ció non significa, ovviamente, che l´informazione debba estendersi a tutti i rischi conessi in genere alle terapie mediche, e in particolare alle operazione chirurgiche, devendo ritenersi esauriente quella informativa che si limiti a rende-re edotto il paziente dei rischi specificamente connessi, rispettivamente, al trattamento proposto e alla sua omissione. Para o autor o único limite ao direito à verdade resulta da exigência do respeito à pessoa humana, que é a base desse direito, considerando as suas condições, instabilidade, imaturidade, condições psíquicas, a capacidade de entender e de querer no sentido de não produzir danos, daí a especialidade de que se reveste a capacidade nos atos de disposição que envolvem o ato médico.
É de se concluir que o direito à verdade e o direito à informação são os requisitos indispensáveis na obtenção do consentimento esclarecido, como causa excludente de ilicitude do ato médico, sob o fundamento de que toda a diminuição e comprometimento da integridade corporal deve ter respaldo no consentimento esclarecido, para que se tenha como válido.
Por se tratar de direito da personalidade, que envolve o direito à vida, importa observar, sub censura, que o consentimento esclarecido, qualificado, deve ser livre, pessoal e não viciado. Os preceitos pertinentes às regras gerais, quanto aos graus de capacidade, na sua extensão, quando dizem respeito aos absolutamente incapazes, objeto de representação, encontram sempre o seu limite no direito à vida, sem olvidar a autorização judicial ou suprimento judicial quando necessário, por exemplo, em matéria de transplantes, na salvaguarda do direito à saúde (forma do corpo) e da integridade, na preservação do direito à vida, jamais no seu comprometimento, mesmo em benefício altruístico de terceiro.
Tecidas essas premissas, em matéria de direitos da personalidade, pela sua própria natureza jurídica, as regras gerais concernentes aos institutos de proteção à personalidade, ou seja, à tutela e à curatela, pelos seus próprios limites, dadas as suas várias espécies, que têm por escopo, respectivamente, a proteção e o zelo de um menor que se encontra fora do pátrio poder e de um maior incapaz, não podem ser aplicadas, simplesmente, pela especialidade da matéria, na extrapolação das balizas legais dos respectivos institutos, que possam envolver atos de disposição do próprio corpo e que dizem respeito ao direito à vida. Dai a necessidade de autorização judicial específica sem olvidar o caráter supletivo e complementar das normas éticas da Medicina, dada a graduação da incapacidade à luz de cada caso concreto. Cumpre ressaltar que o recente Decreto n° 879, de 22 de julho de 1993, que regulamenta a lei sobre transplantes (Lei n° 8489, de 18/11/92), dispõe em seu parágrafo 2°, do art. 12, quando trata dos incapazes, não obstante a sua péssima redação e imprecisões jurídicas, que a doação ali especificada "somente poderá ser realizada após autorização judicial", nas condições ali estabelecidas. Por outro lado, mutatis mutandis, o mesmo não se aplica nos casos de interrupção dos meios mecânicos de ventilação, na concretização da morte encefálica, em face de pacientes terminais, quando se tratar de manutenção totalmente fútil, não condizente com a própria finalidade da medicina, o que está a merecer estudo mais aprofundado, em face dos presentes lineamentos, na tutela da dignidade humana.
É de se sustentar, assim, que não obstante as regras gerais que envolvem a capacidade de exercício e gozo dos direitos, a aptidão de querer e de entender, que se liga ao direito à informação, pode não existir em pessoas maiores de 21 anos, não obstante a capacidade jurídica plena prevista pelo ordenamento civil, de modo que, aquele que não compreende não está apto a consentir, cujas situações, devem assim, ser examinadas à luz do caso concreto, na avaliação da maturidade mental, na obtenção do consentimento válido e acima de tudo esclarecido, livre e espontâneo e com discernimento para que não se configure a antijuridicidade do ato a ser realizado, tendo como limite intransponível o direito à vida. Assinala-se, entretanto, que o médico está obrigado a agir em estado de necessidade, pois, como diz Geníval Veloso de França "o médico não pode dispor incondicionalmente da vida do seu paciente a ponto de obrigá-lo a aceitar uma conduta terapêutica, a não ser diante de iminente perigo de vida" (6).
A matéria é vasta e ampla e não pode ser exaurida no presente trabalho, valendo ressaltar, como regra primordial que nos atos de disposição as regras gerais que se relacionam com a capacidade para os atos da vida civil não podem deixar de prescindir da conjunção dos preceitos éticos e particulares que dizem respeito ao ato médico, em face da específicidade dos direitos que estão a envolver, ou seja, os direitos da personalidade na tutela do direito à vida e conseqüentemente do direito à saúde, como forma de proteção do corpo humano, vale dizer, como princípio primário e determinante.

Os pacientes terminais e a morte encefálica

A personalidade termina com a morte. Extinguindo-se a personalidade não há que se falar de pessoa e sujeito de direitos. Em respeito à dignidade humana, o cadáver, o corpo humano inanimado é protegido pelo direito e não pode ser objeto de relações de direito privado patrimoniais, por ser res extra commercium, por conservar a memória da pessoa viva e envolver relações de família. A morte interessa para o direito para efeitos sucessórios, importando, portanto, o momento da morte na determinação de efeitos jurídicos.
É de se ponderar que a concepção inicial de morte cerebral exsurgiu pari passu com o advento dos transplantes de órgãos e tecidos humanos. Os avanços tecnológicos da medicina propiciaram prolongar indefinidamente uma vida, por intermédio da circulação extracorpórea e respiradores artificiais, possibilitando, ainda, a ressuscitação cardíaca, o que veio revolucionar o tradicional conceito de morte clínica, a tradicional parada cardíaca e respiratória, modificando-se, assim, o conceito de morte. Com a realização dos transplantes de órgãos impôs-se novos critérios na determinação da morte, justamente visando facilitar os transplantes ante as exigências de órgãos íntegros, viáveis, hígidos e perfundidos, ao lado de novas técnicas de controle da rejeição.
Tais questões levam não só os médicos como os juristas ao reexame da questão - vida e da morte - , eis que a realização dos transplantes, ab initio passou a depender de uma rápida extração do órgão do doador antes que sobreviesse a morte celular, ou seja, a destruição celular, denominada morte biológica. De outro lado, as novas técnicas de reanimação vieram permitir que se prolongassem artificialmente as grandes funções vitais do organismo, como a circulação e a respiração.
Considerando que a morte é um processo lento e gradual, distingue-se a morte clínica (paralisação da função cardíaca e da respiratória) da morte biológica (destruição celular) e da morte inicialmente conhecida como cerebral e hoje caracterizada como encefálica, a qual resulta na paralisação das funções cerebrais. A morte clínica pode, em face dos avanços tecnológicos da medicina, desaparecer com os processos de reanimação, permitindo, assim, manter a vida vegetativa, mesmo após a superveniência da morte cerebral. A morte, antes identificada como a cessação da atividade espontânea da função cardíaca e respiratória, com a paralisação circulatória irreversível, passou a ser determinada com a paralisação das funções cerebrais.
O fato é que a fixação de critérios na determinação da morte denominada "cerebral" foi-se estabelecendo à luz das normas que se criaram para a realização dos transplantes, o que ensejou os mais variados debates sobre o assunto, na busca de uniformização de conceitos.
Em 1968, o Conselho das Organizações Internacionais de Ciências Médicas (CIOMS), vinculado à Organização Mundial da Saúde (OMS) e à UNESCO, reuniu-se em Genebra, e estabeleceu critérios sobre morte cerebral aprovados por unanimidade, em declaração conjunta por todos os países que ali compareceram, fundada sobre "o que se deve entender por morte do doador", em casos de transplantes: "1) perda de todo sentido ambiente; 2) debilidade total dos músculos; 3) paralisação espontânea da respiração; 4) colapso da pressão sanguínea no momento em que deixa de ser mantida artificialmente; 5) traçado absolutamente linear de eletroencefalograma".
Na caracterização da morte "cerebral" inúmeros simpósios e congressos se realizaram no sentido de elaborar documentos nesse sentido, como a "Declaração de Sidney", e a do "Comitê de Harvard" utilizada por muitas clínicas cirúrgicas. Outros, por sua vez, preferem a declaração contida na The Human Tissue Act, de 1961, da Inglaterra, que trata especialmente da morte cerebral, cujas considerações preliminares merecem ser transcritas, pelo significado que encerram: "Em 1974 o médico chefe do Departamento de Saúde e Segurança Social pediu aos Colégios Reais que considerassem a definição de morte cerebral (brain death) e seu diagnóstico. A questão surgiu no contexto do estabelecimento da morte de possíveis doadores de órgãos, mas teve um maior interesse para todas as situações clínicas em que as funções vitais eram unicamente mantidas por meios mecânicos. Em resposta àquela solicitação foi escrito um documento que foi recentemente aprovado unanimemente pela Conferência dos Colégios Reais e Faculdades do Reino Unido. Este documento, que aparece a seguir, descreve em termos gerais a diagnosis de morte e estabelece critérios detalhados de diagnósticos para determinar quando ocorre a morte nos casos em que as funções vitais tenham sido mantidas mecanicamente".
Prossegue, com os consideranda, na explicação do desenvolvimento da medicina, com as novas técnicas de reanimação: "Com o desenvolvimento das técnicas e cuidados intensivos e sua ampla aplicação no Reino Unido, chegou a ser uma situação comum nos hospitais ter pacientes em estado de coma profundo e inconscientes, com graves lesões cerebrais, que são mantidos com respiração artificial por intermédio de ventiladores mecânicos. Este estado tem sido reconhecido desde há muitos anos e tem sido preocupação da classe médica estabelecer critérios de diagnóstico de tal rigor, que uma vez cumpridos possa ser desconectado o ventilador mecânico com a segurança de que não havia nenhuma possibilidade de recuperação".
O fato é que têm sido muitos os argumentos filosóficos sobre a diagnosis de morte, que não se circunscreve mais com a cessação das funções vitais da respiração e da circulação. Entretanto, com a capacidade técnica de se manter artificialmente estas funções, tem-se constituído tema de grande interesse público o dilema de quando desconectar o ventilador. Aceita-se que a morte ocorre com a cessação permanente da atividade do tronco cerebral, ensejando, assim, o conceito de morte encefálica, mais abrangente do que "morte cerebral", não obstante a expressão "morte cerebral", em seu significado comum e vulgar diga respeito à cessação de todas as funções cerebrais.
A questão diz respeito à caracterização da morte encefálica, termo este mais abrangente do que "morte cerebral" e tecnicamente mais perfeito, não obstante as legislações adotem a terminologia "morte cerebral", dentre a variedade de critérios estabelecidos. Ressalta-se que o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, por intermédio da sua Clínica Neurológica, em 1983 estabeleceu critérios de morte encefálica (8).
Considerando que a morte clínica (paralisação da função cardíaca e respiratória) pode reverter com os processos mecânicos de reanimação, ocasião em que se pode instaurar a vida vegetativa, a qual pode ser mantida, mesmo após a superveniência da morte encefálica, o dilema do médico com a morte está justamente na decisão de suspender os esforços de reanimação, pois uma vez ocorrida a morte encefálica revela-se estéril prosseguir mantendo-se artificialmente as funções cardiorrespiratórias, em terapêutica fútil, desgastante, onerosa tanto aos pacientes como para as instituições hospitalares, no sentido de evitar aos familiares um trauma sobrevindo de inúteis esperanças.
Vale ressaltar as ponderações do Professor Motta Maia, Catedrático de Cirurgia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que em 1968 publicava original artigo sobre "Novos aspectos da cirurgia moderna", demonstrando, naquela época, os avanços da medicina, o progresso científico, revolucionando conceitos básicos, com o estabelecimento de novas doutrinas. Examinando a questão sob quatro aspectos: médico-biológico; moral-religioso; médico-legal e técnico-científico, tece importantes esclarecimentos. Sob o aspecto médico-biológico estuda o conceito de vida e morte, a questão central nos transplantes de partes de cadáveres, dando-nos a concepção de vida: "O professor Wassermann, Chefe do Departamento de Medicina Interna do "Karl Bremer Hospital", da Universidade de Stellenbosch, da África do Sul, concebe vida como a atividade biológica, sociológica e psicológica, manifestada por um dinamismo mantido por processos intrínsecos ao organismo - elementos naturais - e sustentada por outros fatores extrínsecos adquiridos pelo próprio homem - a cultura. Obviamente, a morte seria a conseqüência da desintegração total destes elementos (9).
De contrapartida, analisa a morte, como um fenômeno natural que se ordena e se processa de maneira gradativa até chegar ao estado de ausência de atividade vital.
Diz Motta Maia que "no espírito popular e no domínio jurídico está enraizada a idéia de que a morte se traduz pela ausência das funções da respiração e da circulação - morte vegetativa" (9).
Acrescenta: "Este estado, é hoje em dia considerado pelos biologistas como uma pura ficção, pois este estado poderá ser recuperado por métodos artificiais, se a função cerebral estiver em condições de reversibilidade. A cessação definitiva da atividade cerebral, brain death, seria para os modernos biologistas e neurologistas, o momento da morte, por se estatuir a perda da personalidade, determinando, portanto, a impossibilidade de relação com o mundo exterior. E a proscrição definitiva do indivíduo perante a coletividade" (9).
Esclarece ainda Motta Maia: "Entretanto, registre-se que a ausência das funções cerebrais não impede que sejam mantidas artificialmente as funções de respiração e de circulação, o que os fisiologistas denominam de vida técnica. O conhecimento deste fato é de grande importância para a transplantação de órgãos de cadáver, pois a manutenção artificial das funções cardiopulmonares, durante um certo período, garantindo o estado nutritivo de tecidos e órgãos, favorece as condições da transplantação. Por outro lado, os biologistas demonstram que mesmo após a cessação das funções permanece o estado de atividade vital, durante um certo período, nas células, tecidos e órgãos - vida residual. Este estado gradativamente chega à desintegração, o que seria o estado de morte total. A duração deste último período é variável de indivíduo para indivíduo, depende da hierarquia textural e da natureza estrutural dos tecidos e dos órgãos. Este período - time factor - é de primordial importância para o êxito da transplantação. Como muito bem se expressa Pierre Müller, de Lille, o limite da vida reside nas células e nos tecidos, verdadeiros órgãos em miniatura, possuidores de certa autonomia vital quando separados do todo, perdendo gradativamente esta atividade, até chegarem à desintegração" (9).
Tecidas estas considerações, expressa Motta Maia a conceituação de morte, citando Jorge Voigt, de Copenhagen, para quem "a morte só ocorre quando toda a vitalidade espontânea (aos órgãos e tecidos) cesse permanentemente" (9).
O fato é que a nova conceituação de morte - brain death - adotada por muitas legislações exsurgiu com maior vigor no momento em que se buscou facilitar a transplantação de órgãos e tecidos, na caracterização do time factor que viesse possibilitar a nova técnica cirúrgica, inserindo-se, assim, em quase todos os países dentro do ordenamento jurídico que tem por objeto o transplante de órgãos.
A determinação da morte, ou melhor, do momento da morte, tem sido debatida até hoje, com a proposição de vários critérios, sem uniformidade, em face das experiências que se vêm realizando nesse campo. Cumpre ressaltar as observações feitas por Luiz Alcides Manreza, da Clínica Neurológica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo: "A principal discórdia, do ponto de vista científico, é conceitual e não técnica. Aqueles que defendem o uso do eletroencefalograma (EEG) procuram o diagnóstico da morte de todo o encéfalo, ou seja, a morte de todas as células nervosas. Aqueles que condenam o uso do EEG para tal finalidade procuram o diagnóstico de morte encefálica (ME) do encéfalo como um todo, como uma unidade funcional, concentrando-se na avaliação da atividade do tronco cerebral. E, realmente, para isso, o EEG com eletrodos de couro cabeludo não tem valor" (10).
Lembra o autor que "desde o conceito original de ME de Harvard, no qual se exigia a ausência de atividade de todo o sistema nervoso central (SNC), complementado por EEG isoelétrico, até os conceitos mais atuais de grandes centros, observamos que o elemento crucial para o diagnóstico de ME é a cessação permanente da atividade do tronco cerebral" (10).
Explica ainda que "uma série importante de trabalhos tem demonstrado que uma pequena atividade cortical residual pode persistir em partes do córtex algum tempo após a inatividade do tronco cerebral. E não há um único registro de atividade do tronco cerebral, em tais casos. A recíproca, contudo, não é verdadeira, pois há registro de diversos pacientes com mínimos sinais de atividade de tronco cerebral e com EEG isoelétrico que se mantiveram indefinidamente" (10).
Aludindo aos problemas estruturais dos serviços médicos, acrescenta o autor: "Esta situação nos angustia terrivelmente se considerarmos que, em nosso serviço, ocorre morte biológica em cerca de 80% dos pacientes que preenchem as condições clínicas, enquanto se aguarda a realização do segundo EEG, uma vez que no primeiro se evidenciou pequena atividade elétrica cortical. Existe ainda uma série interminável de problemas de ordem técnica, desde os artefatos produzidos pela parafemália que normalmente encontramos em uma Unidade de Terapia Intensiva e que acompanham um paciente em coma, da movimentação de pessoal até as limitações de tempo e horário, se considerarmos que a grande demanda de politraumatizados é à noite e nos fins de semana"(10). Conclui o autor sobre a inexistência, em nosso país, de uma lei clara sobre o assunto, mencionando vários diplomas legislativos.
Avelino Medina, em importante trabalho, apresenta considerações sobre o tema, esclarecendo que: "A expressão coma irreversível (coma depassé) é usada por alguns autores para pacientes que entram imediatamente em coma após traumatismo craniano ou episódio de anóxia, mas que retém fragmento de função neurológica tais como reações pupilares ou reflexos corneanos. Além da inconveniência da expressão, tão imprecisa chamada coma irreversível, há o sentido contraproducente da palavra irreversível". Sustenta ainda que "... alguns pacientes evoluíram para recuperação, com ou sem incapacidade residual, mormente se tratando de crianças. É expressão que deve ser evitada" (11).
Tendo em vista as imprecisões conceituais entre morte clínica e morte cerebral, bem como morte biológica, utilizadas indiscriminadamente, além da morte encefálica, de caráter particularizado, empregadas aleatoriamente, citamos a descrição de Avelino Medina do processo biológico de morrer que ocorre na seguinte ordem: "Primeiro, o córtex cessa de funcionar; depois, o tronco encefálico; depois, os movimentos respiratórios espontâneos; depois a atividade cardíaca; finalmente, as outras funções vegetativas. Quanto mais desenvolvido o córtex cerebral na escala zoológica, mais depressa o córtex morre; durante a ressuscitação, quanto mais desenvolvido o córtex cerebral, maior a probabilidade de o animal ter restabelecido plenamente as funções vitais. Provavelmente, o córtex cerebral exerce função vicariante (compensadora) de outras áreas encefálicas e seu dano significa perda de grandes capacidades adaptativas e de defesa. Pode-se inferir a gravidade clínica de pacientes com lesão encefálica, implicando distúrbio de consciência, mormente no sentido de embotamento e supressão da consciência" (11).
Ainda de acordo com Avelino Medina: "Morte cerebral é o dano irreversível, global de todo o encéfalo incluindo o tronco encefálico, mantendo-se as atividades pulmonar e cardiovascular por processos artificiais. O processo biológico de morrer tem imensa complexidade de ordem neurofisiológica, fisiológica, terapêutica e legal. A morte não é um momento, mas parte de um processo que, em certas circunstâncias, pode ser interrompido, por não ser necessariamente terminal. A posição filosófica ante os eventos da morte varia conforme a cultura e a ideologia de determinada sociedade. O grande problema é o diagnóstico seguro de morte cerebral, visto que nenhum processo tecnológico isolado mostrou-se integralmente satisfatório" (11). Tecidas estas considerações é de se assinalar que não compete ao Direito conceituar e muito menos estabelecer por intermédio de lei critérios para a constatação da morte, pois, cabe à Medicina, como ciência, fazê-lo. Todo e qualquer diploma legislativo que se proponha a determinar qualquer parâmetro definitivo estará colaborando para impedir a adoção de novos procedimentos médicos que acompanham o próprio avanço da Medicina, pois na evolução do tempo teremos certamente novo conceito de morte. Ademais disso, o Direito como ciência, como a arte do bom e do eqüitativo, não se resume na lei, considerando as mais variadas formas de expressão de que se reveste, como pode ser visto em R. Limongi França (4).
Tendo presente a própria individualidade humana, em que os critérios na constatação da morte cerebral ou encefálica se diferenciam caso a caso, dentro das condições clínicas de cada paciente, levando em consideração todo um conjunto de causas e efeitos, na complexidade de que se reveste, não cabe ao Direito estabelecer padrões que venham a se chocar com a própria finalidade da Medicina, tantas vezes esquecida e olvidada, em que a ética assume, na verdade, caráter complementar e supletivo, na atuação concreta a que se propõe.
Basta constatar que do conceito inicial e tradicional de "morte cerebral", previsto nas várias legislações sobre transplantes e que passou a diversos Códigos de Deontologia Médica, passou-se à utilização de uma terminologia mais precisa e adequada, com a denominação atual de morte encefálica e que com o evoluir do tempo poderá sofrer modificações, considerando os estudos sobre a atividade do tronco cerebral e do córtex.
Por sua vez, as imprecisões legislativas quanto à determinação da morte, as quais se encontram justamente no seio das legislações sobre transplantes de órgãos e tecidos humanos, derivam do fato de que o estudo isolado da conceituação da morte cerebral, esta considerada em sua terminologia ampla, restou descurado, o que fez com que muitos países proibissem toda e qualquer verificação da morte cerebral por médicos participantes da equipe de transplantes, legando tal atividade aos neurologistas e intensivistas, ou melhor, aos médicos alheios à equipe cirúrgica e especializados na matéria, buscando-se, assim, toda a isenção necessária na realização do ato médico.
Não é sem razão que comungamos da opinião de Avelino Medina quando discorre sobre o aspecto legal sob o qual "o médico há de se resguardar cuidadosamente. O ponto de vista de morte cerebral é científico e não de lei, na maior parte do mundo, inclusive no Brasil. Grande problema na prática é determinar se e quando interromper as medidas de sustentação vital. Deixar que a família decida sobre tais medidas contribui para aliviar a "consciência" do médico. Opina Negovsky que "somente o médico - que compreende integralmente a possibilidade de salvar o paciente - tem o dever de decidir da interrupção da sustentação vital quando não houver mais esperança de o paciente tornar-se novamente um ser humano". Em certos países, existem processos legais imputando a responsabilidade ao médico por morte decorrente de imprudência. Nos Códigos Penal e Civil brasileiros, encontramos respaldo para implicações semelhantes" (11).
Concluímos que estabelecida a morte cerebral, com base em diagnóstico preciso, em seu significado amplo, abrangente, com a manutenção da sustentação vital, meramente vegetativa, por intermédio de meios mecânicos, a suspensão ou interrupção da reanimação torna-se lícita e também necessária, evitando-se com isso tratamentos inúteis, onerosos, tanto para a família e os responsáveis pelo paciente como pela instituição hospitalar.
Não há que se falar em eutanásia, em possível "direito de morrer", em face da impossibilidade de o paciente voltar a ter vida sem o auxílio das máquinas. Não há também que se falar em pessoa, na ausência de reatividade vegetativa e respiração espontânea, dentro da complexidade de critérios na configuração da morte encefálica.
O que se pretende demonstrar é que toda e qualquer interrupção de sustentação cardiorrespiratória em face da morte encefálica não pode ser confundida com a eutanásia, no sentido de privar de vida um ser humano por motivos filantrópicos, propiciando-lhe a "boa morte", com o intuito de evitar sofrimento intenso e acima de tudo desnecessário.
Segundo o ilustre professor Marco Segre, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo: "Não se trata de autorizar, ou de proibir a prática da eutanásia, mas apenas de definir se o paciente está vivo ou morto" (12). Maior clareza é impossível, pois o dilema construído em torno da questão - interrupção dos meios mecânicos - nada tem a haver com a "eutanásia" ou eventual direito de morrer,direito este, diga-se desde logo, da personalidade, que diz respeito ao direito ao próprio corpo e nada obsta, com fundamento no consentimento esclarecido que o paciente decida sobre si mesmo e sobre a sua própria vida. Nada impede que um paciente recuse receber, em sã consciência, com plena aptidão de entender e de querer, tratamento médico, como também dispor, em declaração de última vontade, o que abrange os relativamente incapazes que podem testar, no sentido de interromper toda e qualquer sustentação vital inútil e desnecessária, quando constatada a sua morte cerebral. O médico está obrigado a agir, isto sim, em estado de necessidade, diante de iminente perigo de vida.
O novo Código de Deontologia Médica da Itália, aprovado em 1989, cuida em capítulo especial da assistência ao paciente terminal, sob a epígrafe - Assistenza ai morrenti - , onde proscreve qualquer forma de eutanásia, tanto passiva como ativa, voluntária ou involuntária, como também alude ao coma, cuja sustentação vital deve ser mantida até o momento da constatação da morte "nos modos e tempos estabelecidos pela lei", permitindo a manutenção vital na morte clínica, "segundo a lei", a fim de ser mantida uma atividade orgânica destinada aos transplantes e pelo tempo estritamente necessário (13).


A Morte Encefálica em matéria de transplantes de órgãos

O recente Decreto n° 879, de 22 de julho de 1993, que regulamenta a Lei n° 8489, de 18 de novembro de 1992, que "dispõe sobre a retirada e o transplante de tecidos, órgãos e parte do corpo humano, com fins terapêuticos, científicos e humanitários", não obstante a sua inescondível inconstitucionalidade, por extravasar a própria lei que pretende regulamentar, cuida, em visível imprecisão técnica, em nítida contradição, da morte encefálica, considerando-a no seu inciso V, do art. 3°, "a morte definida como tal, pelo Conselho Federal de Medicina e atestada por médico".
Desconsiderando, portanto, ab initio, os próprios avanços da Medicina, principalmente das instituições voltadas exclusivamente para a pesquisa científica, notadamente aquelas que se dedicam às várias áreas especializadas da Medicina, tal preceito vem coarctar o acolhimento do progresso médico nessa matéria. Por outro lado, ao pretender outorgar ao Conselho Federal de Medicina a prerrogativa de definir a morte encefálica, está a confundir definição da morte encefálica com o estabelecimento de critérios na sua constatação, eis que, ad argumentandum, toda pesquisa médica nessa área, cientificamente comprovada, não poderá ser acolhida enquanto se "chocar" com a referida "definição" a ser dada pelo CFM, na padronização preestabelecida que está a impor.
O próprio fato da adoção da nova terminologia - morte encefálica - ter substituído a antiga - morte cerebral - vem demonstrar, por si só, que, certamente, com a evolução, teremos conceituações cada vez mais precisas.
Ademais disso, a locução inserida no texto legal - "atestada por médico" - ampla e abrangente, afronta ao nosso ver, os critérios mais avançados que determinam a especialização desse ato médico, de extrema responsabilidade, que deve ser realizado por mais de um médico, tal como preceitua The Human Tissue Act, de 1961, da Inglaterra, e a The Human Tissue Act of Northern Ireland, de 1962, que resultou da Conference of Royal Colleges e das Faculdades do Reino Unido, portanto, detentores da opinio doctorum.
Naquela época, recomendava-se no Reino Unido, em nítido avanço em relação aos demais países, a realização do diagnóstico por mais de um médico, especializado, com mais de cinco anos de experiência e alheios à equipe de transplantes.
Além disso, observamos logo a seguir, que em visível contradição, o parágrafo único do aludido inciso V, do art. 3°, preceitua que "a definição de morte encefálica, a que se refere o inciso V deste artigo, não exclui os outros conceitos de condições de morte", em péssima redação.
Isto posto, em matéria de transplantes, dentro dos objetivos da regulamentação estabelecida, por intermédio de "decreto", que extrapola a própria lei a que se propõe "regulamentar", extravasando seu âmbito, o atual diploma revela-se um retrocesso em relação às demais legislações modernas.
Completando as contradições, constata-se ainda, que o seu art. 8.°, ato contínuo, determina que "a retirada de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano será precedida de diagnóstico e comprovação da morte (sem especificar), atestada por médico (não importa o status) nos termos da Lei de Registros Públicos", a qual, diga-se desde logo, cuida do "óbito" e do seu "assento", "em vista do atestado médico, se houver no lugar, ou, em caso contrário, de duas pessoas qualificadas que tiverem presenciado ou verificado a morte (art.77, Lei n° 6.015/73), confundindo transplantes in vivo, com mortis causa.
Assim, embora desvincule o diagnóstico e a comprovação da morte (sem especificar) do transplante de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, em que o médico que atestar não poderá ser o mesmo a realizar o transplante, embora transplante se realize por intermédio de equipe, chega ao ponto de impor, uma vez comprovada a morte encefálica, nos termos do seu inciso V, do art. 3.°, ou seja, aquela "definida como tal pelo CFM e atestada por médico", a sua notificação compulsória, "em caráter de urgência", não obstante disponha no seu parágrafo 1.°, do art. 8.°, que "o diagnóstico e a comprovação da morte não deverão guardar qualquer relação com a possibilidade de utilização de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano para transplantes".
Assinala-se, entretanto, que a morte encefálica (genericamente denominada cerebral) não se liga necessariamente aos transplantes, objeto do referido diploma legal, à falta de uma regulamentação mais precisa, em face dos preceitos éticos que envolve, o que faz com que a matéria, por si só, permaneça lacunosa, notadamente quando diz respeito à dignidade da pessoa humana.
Qualquer regulamentação que venha afrontar o direito ao corpo, que se subsume no direito à vida e à saúde, os quais se sobrepõem como garantia constitucional, como direitos da personalidade, estará eivada de invalidade, dada a própria natureza jurídica desses direitos.

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