Sexo e Morte. Juntos, por que?

A cultura atual achará, provavelmente (e, no mínimo), estranho “combinar” sexo e morte. Mas, se se dedicar uns momentos para reflexão (nunca temos tempo, hoje, ainda mais para o que nos afeta o mais profundo), certamente entenderá. São duas “energias” avassaladoras que movem e mantêm o mundo, embora sejam, ambas, motivo de medo e/ou felicidade (esta também nos assusta, embora neguemos). Parecem contrários. Não são. MORTE e SEXO. NINGUÉM passa pela vida, ou a vive plena sem uma ou outro. Não temoos sido, porém, capazes de os aprender ou ensinar. Fugimos de ambos os temas. Permeiam o dia a dia e fingimos não existirem. A sexualidade (que TODOS, do recém nascido ao moribundo, até os que “optam por não a viver” - se isto fosse possível -), todos a vivem. Mas, se não se foge do "olho no olho", esconde-se. Metem medo, e muito. Já a morte, retratada terror, que “vem” para nós (na verdade, “está” em nós) a temos como medo maior, sem disfarce. Porém, estranhamente complementares, “controlam” o mundo e fazem o humano trilhar menos perto dos extremos. E, paradoxalmente, nos extremos... Sexo e Morte. O mundo não existiria, tal como é, sem a morte, sem o sexo e seus exercícios, suas presenças.

Ora, entendamos. Nenhuma mente, por mais crédula que seja, por mais inocente que se possa imaginar, ainda acredita em fantasias (até úteis no despertar da humanidade, ainda selvagem, com pouco ou nenhum conhecimento, onde tudo era ensinado ou contado de maneira figurada, alegórica, para dar uma mensagem, em geral forte, que tenta cooptar para a causa defendida, seja por vislumbres de alegria e paz, como a promessa do paraíso, seja pela ameaça de dor, como a figura do inferno). Embora nos nutramos delas e nelas.

Nascer pela cegonha. Ou acreditar que a gente tem o poder de “fazer um filho”. Fazemos, sim, pelo SEXO, um corpo. A matéria. E, assim, nos satisfazemos em relação ao poder de criar, e nos sentimos bem, imaginando que o filho é fruto nosso, “fabricação” nossa. Se ele, o corpo, não for habitado, será um "monte de matéria", um belíssimo bólido, sem motorista. Perguntamos se o clone (que não tardará assim tanto, provavelmente) seria nossa repetição. Muita inocência imaginar que sim. Provavelmente, ao “nascer”, seria nossa figura de quando nascemos, mas até aí já começa a diferença, pelo tipo de parto, por exemplo. Ou seja, o meio externo entrará com altíssima contribuição na formação do ser humano. É preciso, então, que ALGO ainda "mais acima", que não pode ser definido pela nossa ciência, venha habitar o corpo. SOPRO, ESPÍRITO, ALMA, NOUS, PNEUMA, não importa que nome venhamos a dar. Sem esta essência, a eterna, definitiva, imortal, nada de vida no corpo. E, claro ainda, Deus não fica de plantão esperando a gente “proporcionar condições” para Ele nos “dar um filho”. O que entendemos nosso, filho, é muito mais. Já existe desde a criação e vem habitar o corpo, na esperança de nos trazer felicidade e ser, ele próprio, feliz. E o faz por livre e espontânea vontade (isto de dizermos que “filho não pediu para vir ao mundo” é, ainda, uma escapadela que encontramos para justificar-nos diante de algo que julgamos não correto na relação com o mesmo. Não é verdade. Pediu para o abrigarmos na matéria, e foi aceito.).

Mas, para nascer, é preciso que haja a primeira morte significativa (mortes acontecem dentro do útero, quando nos formamos e crescemos e, na verdade, ocorrem ainda antes de sermos concebidos, pois nossos “quase corpos”, os espermatozóides, se perdem aos milhões, para que tenhamos sido o vencedor). O problema é que não nos “ligamos” nisto (o que é bom, na medida em que ainda não estamos prontos para entender pois, imaturos, “temos os filhos” como propriedade, como nossa continuação...). E, durante a vida, inúmeras outras mortes acontecerão, todo dia, a toda hora, e não percebemos ou não queremos perceber. As mortes vão se somando. A elas se sucede, sempre, um nascimento, ou um renascimento. Somos outros depois de cada morte, mesmo que não a percebamos ou não percebamos nossa mudança. Morremos, pois, todos os dias, e renascemos. Morrer e renascer. Aquela criancinha indefesa vai se transformando até se tornar adulta. Transformações, PASSAGENS. Isto, sem relacionar as mortes do dia a dia que não estão no nosso corpo, mas nos atingem, nos modificam, nos “matam” lentamente, e nos permitem renascer novamente, mais fortes, mais experientes. Até que chega a GRANDE MORTE, a que aprendemos a ver como o final e tal nos embota a percepção pois é muito mais que isto, é o RENASCER, LIBERTAR. Mas, se TODAS as mortes que nos permeiam são cercadas de renascer, porque a “última” não seria, também, um renascer?

TODOS queremos amar. Viver nossa sexualidade. Temos os orgasmos da vida como mostra do êxtase que é o viver no Paraíso, livre enfim. Mas, também, TODOS queremos morrer. SIM, TODOS QUEREMOS MORRER. Um exercício a que nos furtamos, negamos, nos revoltamos, até. Mas é a pura verdade. Faça uma pequena reflexão e se imagine imortal, preso no corpo material, corruptível, que vai envelhecer, envelhecer, até não se prestar a mais nenhuma qualidade de vida. Ali, velho e alquebrado, dependendo em tudo de todos, com seus entes queridos já partindo ou em processo de também partir, você sozinho... Aí implorará pela MORTE. Não há como fugir disto. É nossa chave de libertação. Não a tornemos dolorosa, quando ela é nossa grande amiga. Não precisamos chamá-la, ou esconjurá-la. Esta está em nós, é nossa grande e amada amiga, a libertadora.

Então, o entrelaçamento proposto é absolutamente pertinente. NINGUÉM, absolutamente ninguém, vive à margem do SEXO (que o fez existir como corpo) ou sem a MORTE (que lhe permite voltar, inteiro).

Obs: As colocações são estruturadas na percepção cristã, mas se pode inferir o mesmo raciocínio em relação a TODAS religiões. Bem vindo à Vida

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segunda-feira, 17 de maio de 2010

Etica: Eutanásia
Júlio Cézar Meirelles Gomes
Primeiro secretário do Conselho Federal de Medicina - Gestão 94/99; membro do Conselho Editorial da Revista Bioética
O autor, à guisa de ilustração do simpósio sobre eutanásia e a fim de amenizar as reflexões sobre um
tema considerado árido, oferece comentários sobre uma preciosa publicação dos anos 30, a saber: um
ensaio médico-social assinado por Januario Cicco, autor, provavelmente médico, que discute pela
primeira vez no país um tema considerado maldito e até insolente para a época. O mesmo desfila com
muita habilidade argumentos favoráveis e contrários, apresentados na engenhosa forma de um
romance que se desenrola através da técnica do diálogo, a exemplo da obra reflexiva de Platão.
O livro põe em evidência histórias sobre a saga dos moribundos, cenas ocorridas há mais de meio
século no tenebroso cenário das Santas Casas de Misericórdia, naquele tempo verdadeiros
depósitos de infelizes. Januario Cicco se inclina, ao fim da obra, pela aceitação da eutanásia como
forma piedosa de abreviar sofrimentos insuportáveis em pacientes terminais, quando o médico baseado
em rígidos critérios deve atuar como a extensão terrestre da misericórdia divina, esta a sua tese final.
UNITERMOS - Eutanásia, paciente terminais, morte piedosa
O livro Euthanásia chegou às nossas mãos em setembro de 1997, em Natal - RN, quando participamos, como representante do Conselho Federal de Medicina, de um debate ao vivo gravado nos estúdios da TV Universitária da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN sobre o tema. Nesta ocasião, tivemos a oportunidade de conhecer o professor de teologia e filosofia, Pe. Eymard L'erastre Monteiro, o qual, após comentar o livro como marco e referência histórica em nossa literatura, teve a gentileza de nos oferecer um exemplar, entre os raros ora disponíveis, e, segundo ele, impresso em caráter excepcional pela "Nossa Editora/Fundação José Augusto" a partir de um exemplar original em precário estado de conservação.
Enfim, trata-se de uma publicação da Editora Irmãos Pongetti, Rio de Janeiro, datada de 1937 - com certeza, a primeira obra ou monografia, no país, de cunho filosófico voltado para o tema eutanásia. Temática audaciosa, senão até esdrúxula para uma época da literatura brasileira absorta em temas românticos, com incursões na seara do realismo, no romance regionalista, enquanto a poesia, como refém do modelo simbolista, ousava os primeiros passos modernistas marcados pela revolta conjunta de forma e conteúdo.
Neste cenário, surge em 1937 esta surpreendente obra assinada por Januario Cicco, o qual supomos médico de formação, em face da estreita familiaridade com temas científicos da medicina e situações observadas em enfermaria de Santa Casa com doentes agonizantes e terminais. Além disso, chama a atenção o seu fascínio pelo tema, instigante para a época, dominada pela sujeição filosófica à doutrina cristã, pela resignação diante dos valores dominantes e mais, pelo conformismo científico.
Nada se pode colher nesta obra sobre a personalidade do autor, sua observação a respeito de outras obras, sua inserção na sociedade da época ou, pelo menos, seu perfil profissional, salvo a presunção acima comentada. A obra, que tem no frontispício o título de novela científica, apresenta-se na forma típica de um romance que hoje seria rotulado no subgênero do realismo fantástico, na verdade um corajoso ensaio sobre o tema biofilosófico da eutanásia. O eixo da reflexão está no âmbito da filosofia aplicada às ciências biológicas, embora o tema da morte seja universal e secular no âmbito da filosofia clássica e mais antiga.
Na página que precede o texto lê-se o subtítulo de ensaio de "crítica médico-social", buscando redefinir o gênero da obra de forma mais objetiva, além de denunciar a afinidade entre autor e profissão médica. E, curioso, não dispõe o livro de prefácio, nota de apresentação, dados bibliográficos ou outros elementos que indiquem a procedência ou origem do autor, quiçá existentes na edição original, no entanto mal preservada.
Na última capa lê-se apenas que o livro foi editado a partir de originais impressos pela Editora Irmãos Pongetti em 1937, pela "Nossa Editora/ Fundação José Augusto", de origem e local também não esclarecidos. O estado de conservação dos originais apresentava-se com certeza muito precário, o que pode explicar a ausência de referências e até a existência de alguns trechos em branco, como ocorre na última página do livro.
Mas não importa, a obra se explica pelo mérito do discurso sobre um assunto temerário e quase maldito no círculo literário da época, primeira metade do século e, vai além, quando deixa entrever as fortes inclinações do autor pela aceitação da eutanásia como procedimento médico, inobstante a sua compreensão sobre a intangível sacralidade da vida, como doação divina. A aceitação da tese está sujeita a regras severas diante dos critérios de doença incurável na época, mas sem qualquer traço de desobediência aos desígnios da Providência Divina.
Há momentos primorosos no texto, onde a reflexão assume a forma de uma discussão humanitária sobre casos terminais e o sofrimento humano é levado ao extremo, incitando o médico a agir movido por misericórdia, solidariedade e até compaixão, no sentido de aprimorar ou concluir a obra de Deus. Tal fato, o desenlace pela mão do médico, ocorre com a mesma naturalidade e reverência com que os parteiros cortavam desde tempos imemoriais o umbigo do recém-nato e separavam o concepto da mãe, com o intuito de ajudar a natureza. O recém-nato, no caso, em direção à vida provisória; o moribundo, por sua vez, em direção à vida eterna e ao suposto Reino da Glória. Vejamos o texto (preservado na forma do português antigo, mais adequado ao clima das reflexões sobre a morte):
Cursava eu o 3º anno medico, na velha Faculdade da Bahia, quando, certa vez, entrando na enfermaria de S. Vicente, logo a minha attenção se voltou para um homem de meia edade, pelos seus gemidos surdos e constantes compugindo a quantos visitavam aquella clinica, então do velho professor Dr. Pacheco Mendes.
Indaguei a causa dos seus padecimentos, e o pobre homem mostrou-me uma coxa aberta por sarcoma, desagregando-lhe a vida aos poucos, torturando-o entre as tenazes de uma agonia dolorosa, obrigando-o a se mover a cada minuto, torcendo o tronco e se contorcendo aos espasmos das punhaladas.
Moço, disse-me elle, acabe com a minha vida. Faz seis mezes que padeço da molestia e dos curativos. Quando aquelle rapaz (e apontou para o interno do dia) vem bulir com a minha perna, eu já começo a soffrer de longe. Si eu tivesse uma faca acabaria com o resto dos meus dias.
Passei-lhe a mão pela cabeça, já grisalha, e cujos cabellos brancos como que numeravam os seus dias de soffrimento, e não sei o que lhe disse; mas senti vontade de chorar, e nesse instante indaguei de mim mesmo porque se não acabava com aquelle martyrio, já que a sciencia cruzava os braços deante da incurabilidade de semelhantes casos?
Ao longo da narrativa, o autor - muito habilmente e para amenizar a discussão (aí temos o romance como veículo ou envoltório da matéria essencial) - usa o expediente de um romance ocorrido em zona rural, impregnado de lendas e superstições, onde mal se distingue o limite entre o fato e o sobrenatural, tão imbricados. A partir daí, constrói uma fascinante história de envolvimento de um médico jovem com a sedutora filha de um fazendeiro, num ambiente de mitos, crendices e padecimentos humanos. Em seguida, descreve de maneira dramática a degradação orgânica do ser humano minado em sua dignidade, numa situação atroz e deplorável capaz de inspirar no semelhante a piedade da eutanásia como um gesto final de solidariedade, de beneficência para um sofrimento insuportável. Só que no presente caso o sofrimento não é mais a dor, mas a própria vida degradada em forma e contéudo:
No último aposento da casa, voltado para a varanda, numa área espaçosa e bem cuidada, protegido por uma cortina de gaze, um leito único guardava os despojos de um morto-vivo, sem orelhas, deformado o nariz, de mãos mutiladas por amputados alguns dedos, numa desaggregação de membros e numa visão macabra de pedaços de carne sangrenta.
Desapparecera-lhe o olfacto; não lhe doíam os orgãos; cegára de vez; só o coração vivia ainda, nutrindo todo aquelle montão de miserias.
Sendo-lhe apresentado pelo Dr. Mario, o recemvindo, que o ia ver, o desgraçado enfermo, voltando-se para os lados do visitante, que lhe fallava docemente, não esperou fins de phrases consoladoras, e explodiu quasi chorando:
- Deus seja louvado, moço ou velho senhor que me vem ver. Sou uma sombra humana que faz mal; pudesse sahir deste leito, já teria terminado os meus dias, porque elles pesam demais na mocidade destas creaturas que envelhecem com a minha dor, e eu sinto que as matarei do meu mal, si não morro antes de contaminal-as. Pelo amor de Deus, doutor, mate-me (o grifo é nosso). Há muito que não quero viver. O Dr. Mario é o meu algoz, porque não acaba com estas torturas. As suas visitas teem missão evangelica, porque tratando de molestias incuraveis, visa o medico apenas a prodigalidade do conforto espiritual, e esse eu terei na eternidade, onde Deus me espera para coroar o meu soffrimento com a graça da sua luz divina. Continúo um obstaculo á felicidade de minhas irmãs, sacrifico neste recanto do mundo dezenas de creaturas sem culpa, e porque querem que eu continúe padecendo, mutilado e ameaçando da mesma tortura quantos me cercam neste inferno? Não, eu quero morrer.
Quand on a tout perdu, quand n'a plus d'espoir, La vie est un approbe et la mort un devoir.
Mais adiante, o autor exibe uma vigorosa argumentação em favor da eutanásia, já em termos dramáticos e exaltados, disposto a levar de vencida qualquer oposição à sua tese:
Por ventura o medico não tem o direito de matar, e os povos mais adeantados em civilização não incluiram nas suas leis a pena de morte, ao talante dos governos, da exaltação popular e do criterio menos sensato de juizes facciosos?
- Tudo depende de legislação, e ainda assim ninguem evitará uma injustiça, tanto mais quanto essa figura austera, vendada e armada, vê sempre para que lado pende o fiel da balança; mas o homem tem sempre uma tára para deitar na concha que lhe é interessada.
- Não são decapitados parricidas e criminosos vulgares, porque são considerados impecilhos à tranquillidade publica e á ordem social? Quando as relações internacionaes se rompem por questiunculas duvidosas, não se armam as potencias, e por méro prazer fuzilam os proprios prisioneiros, contra todas as leis de guerra, sociaes e humanas?
Não será, por ventura, uma obra de misericordia parar o soffrimento de um leproso naquellas condições, visando-se o bem, evitando-se a disseminação fatal?
Essa reclusão que os governos estabeleceram, por indicação exclusiva da medicina, já provou a algum povo a extincção da molestia?
E depois, si a sciencia topasse com o especifico dessa desgraça social, que beneficios viriam para os cegos, os mutilados, para esse pobre homem da novella, pedindo a nossa caridade de terminar o que tanto custa a acabar?
A Noruega, Islandia, conseguiram, systema-tizando a reclusão, fechar os seus leprosarios?
Sejamos honestos. Alliviemos pela euthanasia áqueles que se decidem a morrer, com a vontade da família e auctorização de lei.
- Caro Dr. Paulo, a justiça humana é uma figura de rhetórica. A propria lei, amanhã, não condemnaria a outro morphetico egual.
Criminosos vulgares escrevem nos jornaes officiaes os detalhes das suas façanhas, e passeiam, á tarde, pelas avenidas, recebendo elogios pela sua chronica litteraria. Destroços humanos, de faces lepurinas e mãos enluvadas cruzam comnosco as ruas da metropole e tomam café ao nosso lado, nas rodas sociaes.
Tuberculosos cavitários, quasi in extremis, recebem os amigos em lautos jantares e dansas aristocraticas. Convalescentes de typho voltam ao seu trabalho de distribuir manteiga á freguezia, comem comnosco nos restaurantes, apertam-se as mãos nos encontros sociaes, e indaga-se, admirado, como se contagiara de molestia transmissivel um moço que escarrára sangue, outro que se prostára febril, de molestia cyclica, quando nas escolas cursam as aulas creanças ainda não refeitas de enfermidades contagiosas.
Januario Cicco, em outro trecho, chama a atenção para o confinamento obrigatório e altamente discriminatório dos pacientes com lepra ou tuberculose, sempre em condições degradantes, o que vem antecipar em quase 70 anos uma discussão oportuníssima sobre hospitalização e segregação de doentes. Vê-se, portanto, a sua preocupação humanitária e abrangente, como um todo, além de também reportar-se ao princípio da autonomia, pouco considerado à época:
- Tem razão o collega, disse Dr. Salema; e o preconceito que as sociedades transformaram em doutrina, em torno da qual criam-se leis sanitarias, castigando doentes num enclausura-mento, contra as liberdades individuaes, a pretexto da salvaguarda collectiva, tem o sabor de um libello á ignorancia dos sanitaristas deste e dos tempos do isolamento nas serras, vestindo-se os leprosos com camisolas assignaladas, chocalhos ao pescoço e inscripções terroristas à testa.
- Felizmente já se vae accordando em permitir que os leprosos frequentem os dispensarios, os ambulatorios; e isso traz a vantagem de attrahil-os aos serviços especiaes, educando a população contra esse pavor do contagio.
- Não é que eu seja contrario aos leprosarios, continuou o Dr. Paulo, tomados nas accepções de hospitaes especiaes, onde se devem internar os desprotegidos da sorte, aquelles que se não podem manter em domicilio, ou não o querem. O que parece demasiado é obrigar-se systematicamente á reclusão (o grifo é nosso), a titulo de evitar a disseminação da molestia.
Ressalte-se além de tudo, que, esta concepção de repulsa à discriminação (Justiça) e desrespeito à vontade do paciente (heteronomia) era uma concepção que, na época, batia de frente com o paternalismo médico (autoritarismo) e afrontava os cânones sagrados da assistência à saúde, considerados como concessão do médico e uma benção derramada sobre os infelizes enfermos.
Além da audácia filosófica imanente à preservação dos direitos humanos no âmbito da medicina, vislumbra-se na obra o acervo científico disponível nos anos 20/30, considerado de ponta para a época e revelador de novos horizontes na doutrina ética e na ciência médica, como dispõe o texto a seguir:
Depois que Cardoso Fontes demonstrou a acção do ultravirus na pathologia das molestias infecciosas, ruiu em parte o edificio da prophylaxia agggressiva, dado que a reproducção das bacterias se faça tambem por emissão de granulos, além da sua divisão transversal, constituindo os elementos filtraveis, inaccessiveis até agora ás lentes. E assim ousa-se dizer que o germen havido no campo do microscopio, sem faculdade reprodutora, não affirma sempre que o seu portador seja um tuberculoso ou um hanseneano, de vez que as manifestações clinicas não o affirmem à priori.
Muito além da visão filosófica perturbadora e revolucionária, o autor mostrou uma lucidez desconcertante ao apontar os grandes favorecidos com a miséria humana, numa antevisão histórica perfeita:
Apezar dos incontestaveis resultados da serotherapia, a peste negra, a diphteria, o tetano, etc., abrem claros profundos no obituario, exgottando a economia privada com esses tratamentos carissimos.
Fala-se hoje de especifico com tamanho desplante, que se tem a impressão de que a medicina dispõe mesmo desses recursos maravilhosos, para o combate certo a determinadas molestias.
Desse patrimonio scientifico só aproveitam os industriaes da molestia, fabricando os afamados especificos (o grifo é nosso), a preços exorbitantes, ao alcance de pouca gente. E o mais interessante é que acompanham as bulas dos velhos e novos especificos, monographias de sabios professores, de medicos sem clinica, sem um serviço especial, onde os seus estudos possam valer um criterio acima de qualquer suspeição.
Logo em seguida, considerando o uso indevido do poder de eutanásia, suas implicações legais, o autor chama a atenção para as impropriedades possíveis no exercício deste poder, mas sem perder de vista a supremacia da tese:
Demais, as leis humanas sempre cogitaram de cercear a maldade, prevendo o choque de interesses inferiores, na actuação dos destinos sociaes. Si se legalizasse a morte prophylactica, seria ella uma porta escancarada á deturpação dos seus verdadeiros fins, dando margem a irregularidades criminosas, porque, entre nós mesmos, que nos dizemos apostolos, que juramos respeito incondicional aos interesses da sociedade, ao principio irremovivel da nossa probidade profissional, extranhamos, pasmos de vergonha, a acção de muitos na perpetração de crimes previstos pelo codigo penal de todos os povos cultos, praticando-se o abortamento clandestino, largamente remunerado. Seria preciso uma penalidade especial para esses vivedores da morte, sacrificando muitas vezes duas vidas, para se ficar mais ou menos tranquilo quanto á inversão dos propositos proclamados pelos sectarios das suas idéas.
- A lei encontraria, naturalmente, meios de acautelar, com segurança, os interesses sociaes.
Tão criterioso se mostra Januario Sicco na defesa da tese que não advoga para a medicina apenas o privilégio da indicação ou da execução do ato, mas aponta um consórcio interdisciplinar (tribunal) para decidir sobre a questão, talvez similar aos poderes dos Comitês de Ética das instituições hospitalares na atualidade, e mais adiante dispõe:
Maeterlink, Spencer e bem muitos outros partidarios da euthanasia, quando attribuem ao medico a execução da morte benefica, não avocaram para elle a prioridade da sentença.
Dado que o medico dispõe de auctoridade scientifica, é indiscutível que do seu lado estão os melhores recursos e conhecimentos para a terminação de uma vida dolorosa, que se não quer acabar.
Vale a pena adeantar que, quando se fala de euthanasia, o profano, ou mesmo aqueles eruditos que se batem pela dysthanasia, por um principio superficialmente moral, eriçam-se-lhes os cabellos e clamam misericordia, deixando entre os demais circunstantes a noção de que o medico, sem outra formalidade, por si só fará a euthanasia, toda vez que a sua sciencia desenganar um desgraçado, ou um desilludido dos recursos medicos reclamar o fim dos seus dias.
- O que é imperiosamente necessario é que o publico saiba das immensas difficuldades creadas pela justiça, para se pôr termo a uma existencia tormentosa. Assim, a legislação euthanasica organizaria um tribunal, perante o qual os casos seriam estudados e resolvidos, acautelando a ordem moral da sociedade, e os adversarios da bôa morte poderiam, então, discutir as vantagens, ou os perigos da morte piedosa.
O livro sobre eutanásia, objeto do nosso comentário, mostra-se portanto rico em histórias sobre moribundos ou seres inviáveis. Apresenta ao longo da narrativa diversos episódios extraídos da história universal, do acervo de lendas e mitologias, para ilustrar e ornamentar o estilo exuberante e pujente da sua tese. Mas, sobretudo, é preciso convir, representa um estudo do direito à morte entre pacientes insalváveis, como flagelados da condição humana ou simples excluídos formais do prazer da vida, se não "cadáveres adiados que procriam", no dizer prosaico de Fernando Pessoa.
A obra é instigante, audaciosa, precursora ao que menos seja de um riquíssimo debate sobre a disponibilidade da vida (Kant), do conceito inovador de cura (não apenas como salvação da morte), visto como alívio do sofrimento, quando a vida é apenas dolorosa na forma e no conteúdo. A despeito da novela que ilustra o tema, não há dúvida de que se trata de uma obra marcada pela reflexão viva em torno de um tema bioético e que não pode ser desprezada no acervo literário sobre o direito à morte assistida na medicina ou fora dela, tema ainda mal resolvido e cada vez mais palpitante às portas do Terceiro Milênio.
A propósito, e para rematar esta reflexão colorida pela literatura, convém citar a quadra de Fernando Pessoa, indicativa de que a vida, ela própria, algumas vezes torna-se uma doença de tal forma que a morte deixa de ser um castigo para se transformar em benção:
"A vida é um hospital
Onde quase tudo falta.
Por isso ninguém se cura
E morrer é que é ter alta"
Por derradeiro, convém recomendar aos leitores, se porventura dispuserem da obra original com referências, em bom estado de conservação, ou dela souberem, informar aos coordenadores do simpósio ou à Biblioteca do CFM, em face do interesse na preservação da memória e, se possível, restauração de uma obra histórica pioneira no tema e precursora na tese, um registro ágil e gracioso da tecnologia médica nos anos 30, além da primorosa crônica sobre atitudes médicas e costumes sociais.


Abstract - EuthanasiaThe author, in an attempt to illustrate the scientific debate over euthanasia and to mitigate reflections on what is considered to be a difficult topic, renders observations on an invaluable publication of the 1930's, a medical and sociological essay written by Januario Cicco, most likely a medical doctor, who reflected for the first time in Brazil on a topic then considered loathsome and even disrespectful. The literary work exposes arguments in favor and against euthanasia in a very capable manner, presented in the ingenious form of a novel which evolves through dialogue, much like the reflective work of Plato. The book unveils stories of the saga of the deceased, scenes which occurred more than half a century before in the frightful setting of the Santas Casas de Misericórdia, precarious and public infirmaries run by nuns, which at that time were virtual depositories of the unfortunate and unwanted. Januario Cicco, towards the end of the novel, sways in favor of accepting euthanasia as a charitable way of alleviating unbearable suffering by terminal patients, when a doctor, based on solid medical principles, must act as the earthly extension of Divine mercy. This is the conclusion he reaches at the end.

Bibliografia

  • Cicco J. Euthanasia: ensaio de crítica médico-social. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1937.

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